Butterfly
“Aprendi
que um homem só tem o direito de olhar o outro de cima para baixo para ajudá-lo
a levantar-se”
Daniel Pereira
Caí na cama com o
aforismo de Gabriel García Márquez latejando na cabeça, já alagada de chuva e
cerveja no bate-bola com os amigos Joaquim Maria Botelho e Luis
Avelima em um boteco próximo ao falecido parque antártica. Nosso destino era o Bar
do Alemão, onde, quem sabe, poderíamos encontrar jornalistas que em horas de
folga se disfarçam de músicos, como o polêmico Luis Nassif ou o próprio dono do
lugar, o cantor e compositor Eduardo Gudin.
O Alemão estava em
reforma. Não sabíamos e, como a chuva persistia, nos aboletamos no boteco ao
lado, onde seríamos testemunhas de uma cena, nada inusitada, que variou do hilário ao trágico, dependendo da sensibilidade ou
do ângulo de quem estava na plateia.
Como qualquer boteco,
aquele também era ressoante como uma concha marítima, diria o inquieto Nelson
Rodrigues, certamente salivando crônica saborosa se ali estivesse como
testemunha ocular de mais um episódio da vida como ela é. Ou não, pois está
ficando rotineira a banalização de determinados comportamentos suscitados pelo
efeito de drogas, seja lá a que espécie ou reino pertençam.
Estávamos proseando em
torno de uma dessas – que chamam de política – quando ela surgiu, esvoaçante como
uma borboleta órfã, frágil e vacilante, talvez ainda recuperando-se da difícil transição do casulo para a luz.
Vestia azul, moldando a
silhueta morena e espigada com generoso decote. Cerca de 1,70m. Modelo quase pluz size. O que deveria ser sua aura
parecia terrivelmente opaca. Por trás dos traços do seu rosto, macerado de
inconfundível desprezo pela vida, os julgadores da cena logo deduziriam que naquele
corpo cambaleante já houvera habitado um ser de melhor cepa – agora
transformado, aos nossos olhos, em farrapo humano.
Trôpega, a caminho da entrada para o
bar, quase desabou sobre a mesa em que estávamos. Ensaiou um discurso
engrolado, típico de quem ultrapassou o limite do escracho moral.
Súbito, porém previsível, vai ao chão, de costas, emporcalhando-se na enxurrada
da calçada. Confirmou a regra de que bêbados e crianças têm algum tipo de
proteção diferenciada, essas interferências da natureza que ninguém explica.
Melhor assim.
Não era moradora de
rua, nem pedinte, atestavam os empregados e frequentadores do boteco. Seria
casada com o traficante-mor da região, disseram outros. Noutra versão pouco factível, era filha de um rico
industrial que foi desprezada pela família. Não, ninguém sabia quem era aquela
moça. Provavelmente nem ela mesma. Quem também saberia mensurar o tamanho da
dor que ela carregava? Ou, como cantou Renato Russo, o tamanho do desejo de não
sentir dor?
A chuva amainou. E ela continuava lá, no chão, fora de controle, emitindo
monocórdico e ininteligível grunhido. Um cliente insinuou-se a ajudá-la, mas foi impedido pelo dono da casa, que olhava a cena como se fizesse parte de um roteiro recorrente. Mas não interferiu quando, logo em seguida, o Mineirinho, bebum contumaz no pedaço, aproximou-se dela e entabulou filosófico circunlóquio. Contrariava a máxima de que "mineiro só é solidário no câncer", como observou Joaquim Maria, lembrando que a autoria do bordão é do jornalista e escritor Otto Lara Resende, nascido em São João del Rei e conterrâneo de Tancredo Neves.
Pelos gestos, Mineirinho tentava conquistar a borboleta. E aparentemente teve sucesso, pois, assim como caiu, de repente, num
passe mágico ela conseguiu sair da horizontal. Sentou-se com as pernas em V,
ajeitou a calcinha branca, deu uma geral no indistinto público, recolocou os
peitões dentro da casinha, ergueu a cabeça, meneou a cabeleira negra espargindo
água para os lados, levantou-se e, segurando-se no vácuo, saiu bamboleante sobre
os saltos de seus sapatos. Altiva! Incrível! Agora ela era mariposa, uma borboleta
noturna. Ninguém a olhou de cima para
baixo. Por comiseração, falta de coragem ou por vergonha mesmo, sabe-se lá!
Certo, mesmo, é que ninguém ali tinha esse direito.
Na mesa ao lado, o Bob
Marley travestido de boêmio paulistano dedilha um desses poemas que
parecem feitos para curar feridas, ou sorrir para o perigo e até mesmo resgatar
do inferno almas penadas como uma mariposa bêbada em busca de luz. Ela não está
mais sozinha: a voz rouca à la Nelson Cavaquinho do anônimo regueiro segue os seus
passos. Parecia em paz.
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