quinta-feira, 14 de setembro de 2023

 

Enfim, na gaveta!

Finados é dia em que as pessoas ainda costumam reverenciar a memória de seus mortos indo ao cemitério. Há as que acendem velas e renovam as flores. E tem aquelas que jogam conversa fora ao pé da cova como se o defunto pudesse ouvi-las. Falam da última festinha em que estiveram reunidos e, claro do time do coração do falecido, enfim, não faltam fofocas porque - na boa? -, ninguém é de ferro e, afinal, deve ser bem monótona a vida de quem morre. O que estou querendo dizer, com todo respeito a quem ainda curte esses hábitos e costumes medievais, é que a dor pela perda de uma pessoa da família ou do nosso círculo de atividade/amizade não pode ser maior do que a cruel realidade: a gente nasce, vive (bem ou mal) e morre. O resto é silêncio.

É memória que vira poesia ou lamento. E ainda bem que é assim, por que o que é a vida se não um rito de passagem para o ponto final dessa estrada Enquanto não se chega lá, o melhor a fazer é conviver com o que se tem. E a saudade de quem se foi, ao contrário de ser entendida como dor irrefreável, tem que ser considerada como bálsamo para mitigar a ausência.

No Finados, é inevitável que as imagens de quem se foi venha à lembrança. Parentes, amigos ou apenas conhecidos das redes sociais. Na minha lista de “perdas” há um belo time deles. Queria ter dedicado um epitáfio para cada um deles, mas nunca me convenci de que estaria dizendo as palavras certas. Então descobri, cinco anos atrás, quando o visitei no Incor, cá em São Paulo, que o Pedro Mercadante (1928-2018), nosso professor de latim no ginásio lá em Assis, poderia ser a fonte da minha curiosidade e ajudar com sugestões lapidares. Afinal, como me confidenciou, ele vinha percorrendo cemitérios e anotando as inscrições registradas nos túmulos, inspirado no projeto do norte-americano Thomas Hall. Ele simplesmente visitou 875 cemitérios e escreveu um livro chamado Humor na Tumba.

Sou capaz de duvidar, porém, que entre os epitáfios anotados pelo gringo, ou que tivessem sido coletados pelo Pedro Mercadante, haja um com a sincera criatividade do considerado Salomão Ésper, com quem tive o privilégio de trabalhar na Rádio Bandeirantes. Certo dia, contestado por um ouvinte que criticou a posição dele e do José Paulo de Andrade (1942-2020), por considerá-la tendenciosa a determinado político, Salomão (que continua firme e forte entre nós) subiu nas tamancas e, para mostrar sua integridade ética (como se precisasse!) revelou ao vivo pelo poderoso microfone da Band, o epitáfio que havia encomendado para a lápide do seu túmulo: Enfim, na gaveta!

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

 Escaleno


Aldeia
Empatia
Universo
Metaverso
Contraponto
E controvérsias.
A roda é gigante.
Perfeição, distopia.
Recuar, nunca desistir.
Bebeu todas. Sem culpa.
Sólidas fossem, as comeria.
Atropelou o cão do inferno.
Entrou sem ver a contramão.
Apagou com o celular na mão.
Sócrates, o grego, preferiu cicuta.
O craque da bola escolheu dia e hora.
E Pelé virou garoto-propaganda no além.
Elvis optou pela aposentadoria no Himalaia.
Lá, continua cantando Aloha e Love me tender.
Drummond deixou José sem mulher e apagou a luz
Foi por causa disso que ele não viu a pedra no caminho.
Não tinha candeeiro, então preferiu amaldiçoar a escuridão.
Entardecia. Disse adeus e saiu cantando cinco letras que choram.

 

DIÁRIO DE UM CADÁVER

 

Meu nome é Ana Bolena. Aqui, onde agora me encontro, está tudo muito breu, fica difícil traçar o meu perfil e muito menos ver o que está em volta. Mas, quem estudou um pouquinho de História sabe quem sou. Ficaria muito zangada se não soubessem. Afinal, estou na imprensa todos os dias, mesmo depois de 500 anos da minha morte. Ou vocês não leem os jornais, sites, redes sociais, não veem televisão, sobre os escândalos da corte? Well, qualquer coisa que se saiba sobre o que rola em Westminter e arredores tem o meu dedo. Lá não se faz nada, nem mesmo sexo proibido, sem consultar os ancestrais, okay?

Mas, o que eu quero denunciar – chamem as televisões, jornais, correspondentes internacionais e o raio que o parta – é um barato muito louco. Diziam que eu era uma vagaba, meretriz, uma puta sem dignidade. Fuck all that. Vão se ferrar. Agora vou contar toda a verdade, em exclusivíssima primeira mão para esse repórter de saco roxo que pelo menos entende de esquifes. Viram o livro dele, O Esquife do Caudilho? Prá mim são credenciais suficientes para quem se dispõe a entrevistar uma alma penada. Mas eu preferi fazer um depoimento. Ele topou. So, let's go.

Os canalhas, e especialmente aquele verdugo francês filho da puta que abusou de mim na cadeia, não me deram sequer a chance de pedir perdão. O meu ex-marido, Henrique VIII, já pagou pela cagada que fez quando me mandou para a guilhotina. Em outra ocasião conto tudo isso em detalhes.

Nesse momento, o que quero dizer é que fiz uma regressão e cá me vejo jogada às traças, cabeça de um lado, corpo de outro, como se minha participação na história da monarquia inglesa fosse a de uma barata, que pode ser pisada e morta ao primeiro susto de qualquer dama da corte. Já morri mesmo, posso falar à vontade, sem qualquer sentimento de culpa. Trai o Henrique. E daí? Todo mundo traía ele. E ele traia todo mundo. Grandissíssimo bastardo. Queria comer, e comia, todas as cortesãs. Vocês já viram esse filme.

Primeiro ele ferrou minha irmã, Maria. A bobinha se deixou seduzir pelas promessas de que seria rainha no lugar da Catarina de Aragão. Essa também era uma idiota. Aí, a babaca aqui se apaixonou pelo garanhão. Não vou mentir e faço justiça: de fato, o cara era um tremendo copulador. Coisa comum no reino. Todas as meninas, obrigadas ou não, queriam dar pro rei, ou pro filho, pro sucessor, pro chefe da guarda, pro cavalariço-mor...uma putaria sem fim, herança dos bacanais do Império romano.

Sorry! Estou me alongando e o tempo está correndo aqui na penumbra em que me enfiaram. Tento acoplar minha cabeça ao corpo. Isso é complicado, na medida em que os comandos motores já não se pertencem. Os caras me guilhotinaram e nem tiveram o trabalho de juntar as minhas partes em um só lugar. É assim que me encontro agora. Sabem o que mais me revolta? Os canalhas do rei sequer me deram uma sepultura digna de rainha.

Fiquei passada com tal indiferença. Jogaram minhas partes num baú, como se fossem comida de cães. Depois, me atiraram numa sepultura anônima. Até hoje fico indignada com esse tratamento. Mas, deixa prá lá. O tempo vai ajudando a gente a entender esses percalços. Prefiro compartilhar um pouco da história que, certamente, não foi contada como deveria ser.

Enquanto continuo esperando que meus restos mortais sejam recolhidos e levados para o cemitério sagrado dos herdeiros da corte, quero desmentir algumas bobagens que têm sido ditas ao longo dos séculos. A principal delas, sem dúvida, é de que o meu casamento com Henrique tenha precipitado o cisma com a igreja católica. Nego, e prefiro ser decapitada de novo a apoiar tal tese. Vocês sabem, a história vai modificando os testemunhos. É como naquele ditado popular: quem conta um conto aumenta um ponto.

Por outro lado, não se pode ignorar que a igreja de Roma tenha se aproveitado das polêmicas vigentes à época nos redutos e catacumbas da realeza. Sinceramente, eu era só uma cortesã, dama de companhia da mulher do rei, a herdeira da Espanha, Catarina de Aragão. Acontece que o rei não podia ver uma ovelhinha nova e, com o poder que tinha, tratava logo de traçar a coitadinha. Vejo agora, dois dias depois de terem cortado minha cabeça, que eu poderia ter agido de forma mais inteligente. O duro é que o mau cheiro que exala aqui nesse buraco dificulta qualquer tipo de raciocínio mais claro.

Alguém já lhes disse qual é a sensação de morrer na guilhotina? Tento, agora no terceiro dia esperando que os urubus venham buscar as duas partes do meu corpo, entender por que fizeram tanta malvadeza com uma mulher bonita e ladina como eu. Sabem o que mais dói? O Rico (era assim que eu o chamava) estava casado há 23 anos com a espanholinha. Perguntei prá ele, quando começou a me assediar: “Escuta, cara, você não está satisfeito com a Catarina nem com a tua amante, minha irmã Maria. O que é que você viu em mim? Sabem o que o canalha respondeu? “I wanna fuck you! Simple as that!

Checking

Desnuda teus medos, silencie lamentos.

Rasgue o verbo, cancele a vingança.

Remova rancores. Perdoe desafetos.

 

Renove o afeto, azare pessimistas.

Sonhe uma vida nova todo dia.

Acenda velas, não culpe a escuridão

 

Assuma tuas fraqueza. É hora da verdade.

Chore de remorso, recupere a razão.

Descarte o joio nas trilhas da insanidade.

 

Embarque nuns versinhos piegas. Viaje!

Há quem goste e até te chame de poeta.

Não sabem o que dizem. Releve!

 

Governe a intolerância, silencie a trombeta.

A rede ruge e as carpideiras choram.

Têm pressa. Vão ao inferno consolar o capeta!