quinta-feira, 26 de janeiro de 2017



               Butterfly                


“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar o outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se”

Daniel Pereira


Caí na cama com o aforismo de Gabriel García Márquez latejando na cabeça, já alagada de chuva e cerveja no bate-bola com os amigos Joaquim Maria Botelho e Luis Avelima em um boteco próximo ao falecido parque antártica. Nosso destino era o Bar do Alemão, onde, quem sabe, poderíamos encontrar jornalistas que em horas de folga se disfarçam de músicos, como o polêmico Luis Nassif ou o próprio dono do lugar, o cantor e compositor Eduardo Gudin.
O Alemão estava em reforma. Não sabíamos e, como a chuva persistia, nos aboletamos no boteco ao lado, onde seríamos testemunhas de uma cena, nada inusitada, que variou do hilário ao trágico, dependendo da sensibilidade ou do ângulo de quem estava na plateia.
Como qualquer boteco, aquele também era ressoante como uma concha marítima, diria o inquieto Nelson Rodrigues, certamente salivando crônica saborosa se ali estivesse como testemunha ocular de mais um episódio da vida como ela é. Ou não, pois está ficando rotineira a banalização de determinados comportamentos suscitados pelo efeito de drogas, seja lá a que espécie ou reino pertençam.
Estávamos proseando em torno de uma dessas – que chamam de política – quando ela surgiu, esvoaçante como uma borboleta órfã, frágil e vacilante, talvez ainda recuperando-se da difícil transição do casulo para a luz.
Vestia azul, moldando a silhueta morena e espigada com generoso decote. Cerca de 1,70m. Modelo quase pluz size. O que deveria ser sua aura parecia terrivelmente opaca. Por trás dos traços do seu rosto, macerado de inconfundível desprezo pela vida, os julgadores da cena logo deduziriam que naquele corpo cambaleante já houvera habitado um ser de melhor cepa – agora transformado, aos nossos olhos, em farrapo humano.



Trôpega, a caminho da entrada para o bar, quase desabou sobre a mesa em que estávamos. Ensaiou um discurso engrolado, típico de quem ultrapassou o limite do escracho moral. Súbito, porém previsível, vai ao chão, de costas, emporcalhando-se na enxurrada da calçada. Confirmou a regra de que bêbados e crianças têm algum tipo de proteção diferenciada, essas interferências da natureza que ninguém explica. Melhor assim.
Não era moradora de rua, nem pedinte, atestavam os empregados e frequentadores do boteco. Seria casada com o traficante-mor da região, disseram outros. Noutra versão pouco factível, era filha de um rico industrial que foi desprezada pela família. Não, ninguém sabia quem era aquela moça. Provavelmente nem ela mesma. Quem também saberia mensurar o tamanho da dor que ela carregava? Ou, como cantou Renato Russo, o tamanho do desejo de não sentir dor?
A chuva amainou. E ela continuava lá, no chão, fora de controle, emitindo monocórdico e ininteligível grunhido. Um cliente insinuou-se a ajudá-la, mas foi impedido pelo dono da casa, que olhava a cena como se fizesse parte de um roteiro recorrente.  Mas não interferiu quando, logo em seguida,  o Mineirinho, bebum contumaz no pedaço, aproximou-se dela e entabulou filosófico circunlóquio. Contrariava a máxima de que "mineiro só é solidário no câncer", como observou Joaquim Maria, lembrando que a autoria do bordão é do jornalista e escritor Otto Lara Resende, nascido em São João del Rei e conterrâneo de Tancredo Neves.
Pelos gestos, Mineirinho tentava conquistar a borboleta. E aparentemente teve sucesso, pois, assim como caiu, de repente, num passe mágico ela conseguiu sair da horizontal. Sentou-se com as pernas em V, ajeitou a calcinha branca, deu uma geral no indistinto público, recolocou os peitões dentro da casinha, ergueu a cabeça, meneou a cabeleira negra espargindo água para os lados, levantou-se e, segurando-se no vácuo, saiu bamboleante sobre os saltos de seus sapatos. Altiva!  Incrível! Agora ela era mariposa, uma borboleta noturna.  Ninguém a olhou de cima para baixo. Por comiseração, falta de coragem ou por vergonha mesmo, sabe-se lá! Certo, mesmo, é que ninguém ali tinha esse direito.
Na mesa ao lado, o Bob Marley travestido de boêmio paulistano dedilha um desses  poemas que parecem feitos para curar feridas, ou sorrir para o perigo e até mesmo resgatar do inferno almas penadas como uma mariposa bêbada em busca de luz. Ela não está mais sozinha: a voz rouca à la Nelson Cavaquinho do anônimo regueiro segue os seus passos. Parecia em paz.

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